Meu bom amigo Gunther foi surpreendido outro dia quando chegava para
apanhar seu flamante SUV numa garagem do Centro. De um canto escuro emergiu uma
criatura que, primeiro, provocou um susto enorme e em seguida uma atitude
defensiva contra o intruso potencialmente perigoso. Não
era para tanto. O vulto era uma amiga que se candidatava a ser mais do
que amiga. Nas mãos, carregava duas sacolas com pinhões. A cena não deixava de ser insólita: de um
lado Gunther todo em alerta e do outro o Vulto, agora como nome próprio, com as duas sacolas e aquela prosaica carga
silvestre. De repente, num gesto desastrado
dela, os pinhões acabaram se esparramando pelo chão.
Naquele momento a dupla se deu conta da presença de
Cinthia, colega e caroneira de Gunther.
Tão assustada quanto o moço, ela ficou sem ação: não sabia se fugava para o veículo, se
juntava os pinhões ou se cumprimentava o Vulto, que conhecia de outras
investidas. Optou por ficar estática,
aguardando o desenrolar dos acontecimentos, enquanto a outra não conseguia esconder o constrangimento com a
presença dela.
Gunther acabou conduzindo as duas no SUV, mas teve o
cuidado de entregar o Vulto primeiro, claramente para escapar de nova
investida. No trajeto a conversa girou
em torno dos pinhões desgarrados, que devem ser metáfora de alguma coisa, a
qual Cinthia, que a tudo assistiu, não soube explicar. Mais difícil é explicar
a paixão de o Vulto por Gunther, os telefonemas em horários tardios ou
cedo demais, os encontros forçados e tudo o mais numa relação condenada à
frustração. Senhora bem ajeitada nos
seus 40 e tanto, casada e com filhos
crescidos, discretamente elegante e,
ainda, com feições que lembram Celly
Campello* quando mais jovem, ela não deveria dedicar-se com tanto afinco à
Gunther, um hedonista militante. Mas o
Vulto não desiste...
Esse prosaico episódio nada tem de edificante ou inspirador, nem
encerra uma lição a ser seguida. Na real é apenas mais uma ocorrência da série
Mulheres que Amaram Demais. Vale como
expressão do esforço dessas mulheres para revelar toda a sua paixão, às vezes
incontrolável. Nem Glória Perez
descreveria melhor a situação em seus folhetins televisivos. Mesmo assim, as mulheres que amaram e amam demais tem o meu
respeito. É preciso coragem, iniciativa, determinação, despir-se de qualquer recato, para cercar
permanentemente o alvo de sua paixão e nem sempre ter a devida
correspondência. Neste caso, passam a
ser mulheres que sofrem demais .Por
isso, merecem mais ainda meu sincero e
solidário respeito.
* Celly Campello, precursora do rock no Brasil. "Estúpido Cupido" foi seu primeiro e maior sucesso. Faleceu em 2003, aos 60 anos.